segunda-feira, 8 de junho de 2009

«Pelos cidadãos, contra o dirigismo»

Artigo de São José Almeida no Público (da semana passada)

Foi apresentado no domingo, em Lisboa, o Movimento pela Igualdade (MpI) no acesso ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. A cerimónia teve um importante valor simbólico, para além do seu valor intrínseco e da qualidade das intervenções feitas por Ana Zanatti, Daniel Sampaio, Pedro Lopes Marques e Isabel Mayer Moreira. Esta última é dona de um brilhantismo discursivo e de uma leitura constitucional centrada na defesa dos direitos humanos que surpreende num país em que é tão ignorado este assunto estruturante das democracias modernas.
A cerimónia de lançamento do MpI tem um valor simbólico imenso que importa salientar e que se desenvolve a dois níveis. O primeiro tem a ver com a luta pelos direitos cívicos dos homossexuais. O segundo, mais amplo, prende-se com o afastamento dos cidadãos da vida pública e política e da gestão do Estado.
No plano da luta dos homossexuais, o lançamento do MpI é um marco histórico. Pela primeira vez, numa cerimónia pública de reivindicação política de um direito, houve um homossexual que não dirige nenhuma associação a falar na primeira pessoa. Neste caso, uma mulher, Ana Zanatti, que fez o seu outing, com uma absoluta componente política de luta por direitos individuais e cívicos.
Mas o que o que se passou no domingo representa também a subida de patamar da luta por direitos dos homossexuais em Portugal. A cerimónia de dia 31 de Maio é o momento simbólico em que se dá a passagem de uma luta aparentemente fechada e centrada em débeis associações LGBT para uma abertura do movimento gay português à sociedade civil.
A luta pelo direito à dignidade humana e ao igual tratamento de todos os cidadãos perante a lei, que caracteriza a democracia e que era feita por alguns, passou a ser uma luta em que está representada a diversidade sociológica portuguesa. De Lili Caneças a José Saramago, de Miguel Sousa Tavares a Ana Luísa Amaral, de Ricardo Araújo Pereira a Susana Feitor, de Vasco Rato a Odete Santos.
É certo que é preciso não esquecer que este movimento, que ultrapassa já a lógica das associações LGBT, tem por trás as próprias associações. Este movimento e o seu manifesto não nascem de geração espontânea. Surgem de uma conjugação de esforços de cidadãos não organizados em associações com associações LGBT, feministas ou de luta contra a discriminação, como a ILGA, as Panteras Rosas, a Não Te Prives, a Rede Ex-aequo, a UMAR, a Rede de Jovens para a Igualdade, a Poliportugal, o Portugalgay.pt, o Caleidoscópio LGBT, a ATTAC, a Associação para o Planeamento da Família, os Médicos pela Escolha, o Grupo de Acção e Tratamento HIV/Sida.
E é o fruto de um trabalho quase anónimo, estigmatizado e estigmatizante, que alguns (pouquíssimos) homossexuais desenvolveram desde os anos 90 - destaque-se, a título de exemplo, Gonçalo Diniz. E que teve como marco, em 1995, o nascimento da secção portuguesa da ILGA, a partir da Abraço e impulsionada pelo terror da sida. Não é por acaso que este direito é reconhecido já nos programas de partidos. É porque houve um trabalho de lobby feito pelas organizações, que deve ser destacado e elogiado.
Assim como é evidente que o reconhecimento ou não do direito ao casamento e consequentemente à adopção, como último direito cívico simbólico que discrimina os homossexuais, não é uma mania - é uma das causas que movem a política nas democracias modernas. Atente-se na luta política à volta deste direito que se desenvolve nos Estados Unidos.
Outra coisa será o reconhecimento social e a mudança de mentalidade profunda, que levará décadas, mas que só será forçada se houver um quadro jurídico que imponha a mudança de comportamentos - como demonstra historicamente a luta pela emancipação dos negros, das mulheres e dos próprios homossexuais.
O nascimento do MpI tem também um significado simbólico no que é em geral a luta por direitos e por causas por parte dos cidadãos, enquadrados por associações, perante o poder político - uma forma de participação democrática moderna que em todas as democracias liberais complementa já a democracia representativa. E que teve um momento alto na luta a favor ou contra a liberalização do aborto.
Ainda esta semana a investigadora de ciência política Conceição Pequito, em conversa com o PÚBLICO (01/06/2009), a propósito da importantíssima investigação sobre o sistema político português que é a sua tese de doutoramento (O Povo Semi-Soberano. Partidos Políticos e Recrutamento Parlamentar em Portugal), diagnosticava como problema específico português, em relação às outras democracias europeias, precisamente a inexistência de sociedade civil. E o que isso significava de factor agravador do desfasamento entre os cidadãos e aqueles que podem ser os seus intérpretes no poder político, os partidos.
Em Portugal, o dirigismo dos partidos tem-se sobreposto e matado à nascença todas as tentativas de expressão política directa de cidadãos. Os partidos, criados após a revolução, sem base social, mantêm-se inacessíveis e sem querer partilhar o poder de decidir. Esse dirigismo, de quem só conta com os cidadãos para garantir votos e encher comícios, como se estes fossem bonecos insufláveis que se usam quando são precisos, pode, todavia, estar à beira de explodir de novo na cara da elite que dirige os partidos.
Até porque, se finalmente houve cidadãos que saíram de suas casas para ir ao Cinema S. Jorge defender a causa do acesso ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, o país corre o risco de viver mais um acto eleitoral em que os portugueses se recusam a entrar nas assembleias de voto e a manifestar a sua opinião nas urnas eleitorais.
Resta saber até quando os cidadãos portugueses vão permitir que as elites que dirigem os partidos mantenham a vida política como sua refém, ou se o MpI é um sinal para durar e multiplicar-se.»

Jornalista
São José Almeida

O Mpi pode ser subscrito aqui.

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