quarta-feira, 2 de junho de 2010

A hipocrisia da UE e do directório das grandes potências, o negócio da “ajuda” à Grécia, o regresso da Questão Social, a manifestação da CGTP...

... o Projecto Europeu e como tudo isto está ligado nas nossas vidas




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A hipocrisia e as contradições entre discursos e intenções proclamadas para show-off e a efectiva prática política do directório franco-alemão, apoiado por uma subserviente Comissão Europeia, no enfrentamento da actual crise e na atitude face aos problemas da Grécia, estão bem ilustrados e chocantemente documentados na intervenção no Parlamento Europeu do deputado dos Verdes, Daniel Cohn-Bendit, que aqui reproduzimos e que foi já também divulgada pelo excelente blogue Ladrões de Bicicletas.

A sua denúncia é mais uma demonstração do naufrágio em que a União Europeia está em vias de mergulhar, podendo conduzir a uma séria deriva nacionalista e populista de direita nos países-membros, um forte recuo da frágil coesão Europeia, a submissão à ditadura do capital e dos mercados financeiros, o golpear do seu grande sinal distintivo e avanço civilizacional (o Estado Social ou Estado-Providência) comparativamente com os outros grandes espaços económicos e políticos, desenvolvidos ou emergentes.

A tragédia e a farsa

Lembremo-nos do que sucedeu na Europa nos anos 20 e 30 do século passado, durante a grande recessão económica, as hesitações e recuos das democracias liberais face à ascensão e domínio, na maioria dos países, de soluções autoritárias, fascistas e nacionalistas com políticas belicistas, a redução do comércio internacional e o crescimento do proteccionismo nacional, o enfraquecimento das instituições internacionais e a criação do caldo de cultura agressivo que conduziu à 2ª Guerra Mundial, tendo como principal e mais sacrificado teatro a Europa, como já sucedera com a primeira grande guerra desse século.

Dizia Hegel que os grandes acontecimentos históricos tendem a acontecer sempre duas vezes e Marx, a propósito, numa sua obra (o 18 Brumário), corrigia essa afirmação, dizendo que sucedem primeiro como tragédia e depois como farsa. Como também analisa Slavoj Zizek numa sua obra recente (First As Tragedy, Then As Farce), a aplicação desta ideia à primeira década do novo século pode ser expressa em dois acontecimentos: a tragédia do 11 de Setembro de 2001, com as consequências e abalos políticos mundiais que se lhe seguiram, e a crise económica e financeira mundial do final da década, que continuamos a viver.

Como podemos interpretar senão como uma farsa trágica a incapacidade, incompetência, desorientação e pequenez das actuais lideranças políticas europeias (de que temos por cá um triste, errático e servil exemplo caseiro), a reacção tardia, titubeante e desunida da UE e dos maiores estados-membros à investida especulativa, que não pára, concentrando o essencial das medidas e respostas em cedências sucessivas à pressão das agências de rating combinadas com os investidores especulativos?

Assim vão fortalecendo a dominação dos mercados financeiros e a consolidação do poder e hegemonia duma direita neoliberal que quer aproveitar a situação para alargar o domínio do mercado a todas as esferas da vida, privatizar o que falta, dar novos golpes na coesão social, agravar mais a precariedade do trabalho e as desigualdades e promover o retorno de um nacionalismo económico, a começar pelas grandes potências europeias,

O naufrágio em curso do projecto da União Europeia

Estilhaçam-se deste modo as declarações grandiloquentes sobre o Tratado de Lisboa. Convertem-se em figuras apagadas de opereta os novos cargos institucionais europeus criados por este tratado como exemplo de reforço da cooperação política. Emerge uma pulsão nacionalista e populista alemã sem escrúpulo em sacrificar os países europeus aos interesses dos seus bancos, sem cuidar do ricochete que também sofrerá. O governo britânico (sempre com um pé dentro e outro fora da Europa) vai aproveitando para se assumir como força de bloqueio a tudo o que limite a liberdade do capital financeiro e alargue direitos sociais. Consente-se a entrada e intervenção do FMI no espaço da UE, esse famigerado organismo cujas receitas conduziram à recessão em tantos países e de que os portugueses guardam má memória da sua intervenção em 1983, lembram-se?

Mesmo a tímida intervenção decidida pela UE para apoiar a gestão da dívida dos estados-membros, foi realizada de modo vergonhoso, irracional e para benefício dos grandes bancos: estes vão financiar-se em nome da crise, ao BCE, a uma taxa de 1%, enquanto o BCE está proibido de adquirir directamente os títulos de dívida pública, à mesma taxa, para financiar os estados-membros, apenas podendo comprá-los no chamado mercado secundário, ou seja, adquirindo-os aos bancos, a juros muito mais elevados.

Como podem pois os mercados financeiros deixar de continuar a pressionar os governos e os países para prosseguirem políticas fortes contra os fracos e fracas contra os poderosos (de que o Governo de Sócrates e o renovado bloco central PS-PSD são alunos exemplares), para prosseguirem a farta acumulação de mais-valias, numa espiral descontrolada de “remédios” que correm o risco de matar muitos pacientes? Eis a famosa (ir)racionalidade do mercado e dos seus agentes, em todo o seu esplendor!

E as poucas medidas faladas na UE para reforçar a solidariedade e coordenação política e económica europeia face à crise, marcam entretanto passo e arrastam-se penosamente nas cimeiras, enquanto à boleia avançam tentativas de um diktat dos poderosos destruidor dum verdadeiro e solidário projecto de união política, de que é exemplo a espantosa proposta alemã de controlo dos orçamentos dos estados-membros antes sequer de os parlamentos nacionais os apreciarem! Ou, dizendo mais exactamente o que lhes vai na alma – terem o direito de exame prévio e censura sobre o orçamento português ou grego, porque ninguém acreditaria na anedota de ver o parlamento português a vetar o orçamento alemão…

Como refere Stiglitz numa recente entrevista ao jornal Le Monde (ver aqui), a União Europeia caminha para o desastre com a política e as receitas de austeridade em curso, em vez de optar por uma política de coesão, de solidariedade e de reforço da sua união política.

Por um novo rumo democrático para relançar a UE e o projecto europeu

Defender o futuro democrático da União Europeia e prevenir novas ameaças à paz na região exigem uma mudança do seu rumo, através da adopção de medidas que têm vindo a ser defendidas e propostas por economistas adeptos de um pensamento crítico, pela ATTAC (ver também aqui a declaração comum das ATTAC europeias, incluindo a ATTAC Portugal) e por forças políticas à esquerda:

- Uma nova orientação para o BCE (não assumindo apenas como função o obsessivo controlo da inflação, mas com a função de promover o emprego e a coesão social e económica),

- A profunda revisão do recessivo Pacto de Estabilidade e Crescimento, que tem sido parte do problema e não parte da solução das economias europeias;

- Um orçamento europeu suficiente e capaz de sustentar as políticas de solidariedade e coesão à escala da UE;

- A instituição de títulos de dívida pública europeia que permitam apoiar as economias mais frágeis sem a sujeição ruinosa actual aos apetites dos mercados financeiros;

-A constituição de uma agência de notação financeira (rating) pública europeia, que enfrente o jogo perigoso das agências de rating anglo-saxónicas (financiadas pelos mesmos bancos e fundos de investimento que avaliam) que, sem transparência ou controlo públicos, põem em causa as economias de países ao serviço da especulação e dos mercados financeiros;

- A proibição no espaço europeu dos paraísos fiscais e dos produtos financeiros tóxicos, a taxação das transacções financeiras e a sujeição de todo o sistema financeiro, e não apenas dos bancos, a um controlo político transparente e rigoroso que defenda o interesse público;

- O desenvolvimento e qualificação do Estado social e dos serviços públicos, racionalizando-os e assegurando a sua sustentabilidade, como um sinal distintivo e uma referência positiva mundial das sociedades europeias;

- Uma política económica que assegure a caminhada efectiva para a coesão e a redução das desigualdades no espaço europeu, que assegure a sua protecção contra o dumping social realizado pelas economias que não respeitam direitos laborais e sociais mínimos e que recuse o caminho da degradação social em nome da competitividade com as economias emergentes, para benefício das transnacionais europeias que para aí deslocalizam a sua produção.

-A afirmação da UE como um bloco político, económico e social de progresso que pese positivamente na balança mundial de forças para uma resposta positiva aos gravíssimos desafios relativos à paz, ao ambiente e à pobreza que ameaçam a humanidade.

Se o proteccionismo económico constitui um recuo à escala nacional, já medidas de protecção económica, controlo e subordinação política dos mercados financeiros e dos movimentos de capitais à escala da União Europeia constituem, como tem sido sustentado por economistas de pensamento crítico e à esquerda, um caminho alternativo para o combate à recessão e à crise, dada a inexistência de instituições políticas capazes de regular e controlar os mercados e o capital financeiro à escala mundial.

A Questão Social permanece central na Europa

Como lucidamente alertou o historiador Tony Judt num artigo notável sobre “O Renascimento da Questão Social”, as reformas e compromissos sociais do pós-guerra nas democracias liberais foram em grande medida uma resposta ao receio do retorno do desespero e descontentamento sociais que se julgava estarem na raiz das escolhas políticas que então conduziram à guerra. Por isso, a Questão Social, se não for tratada, não desaparece, buscará antes saídas mais radicais.

O mesmo autor, num livro que acaba de publicar (Ill Fares the Land), observa que o período de cerca de três décadas passadas até meados dos anos 70 constituiu um período de redução das desigualdades, mas que desde então até à actualidade (com as políticas iniciadas por Reagan e Thatcher e sob a inspiração do utilitarismo individualista e do capitalismo libertário de Hayek), as desigualdades voltaram a crescer. O CEO da General Motors recebia em 1968 o equivalente a 66 vezes a remuneração média de um trabalhador da empresa. Hoje, o CEO da cadeia de distribuição Wal-Mart recebe 900 vezes a remuneração média dos seus trabalhadores. Por cá, basta consultar os relatórios da CMVM (ver aqui) sobre as remunerações dos administradores das empresas portuguesas cotadas em bolsa para perceber que a situação não é diferente nem melhor

Judt, um insuspeito e lúcido social-democrata, alerta-nos que o maior perigo da submissão actual ao mercado e do recuo do Estado na sua dimensão social, reside no crescimento das desigualdades e de estas corroerem por dentro as sociedades. Propõe por isso na sua obra, que constitui talvez uma espécie de testamento político (está gravemente doente), ele que é um dos maiores estudiosos e historiadores do século XX e das suas lições, que a esquerda recomece de novo, que os cidadãos ousem criticar quem governa, que se assuma o conflito social e a Questão Social como questão permanente das sociedades democráticas, que se recupere a centralidade do Estado ao serviço da redução das desigualdades sociais e como um renovado Estado-Providência.

E à esquerda, que fazer?

Esta visão de Judt está nos antípodas das “terceiras vias” com que os partidos da Internacional Socialista se foram rendendo na Europa à realização de políticas de direita, pressionados pela onda neoliberal e pelas teorias do capitalismo libertário. Mas é um contributo inspirador para os que não desistem de agregar forças à esquerda, e que porfiam no combate para subordinar a economia à política, que devolva o sentido moral à economia em vez da sua deificação como ciência exacta que não é, que tenha como prioridade as pessoas e não os mercados, que assegure o primado do interesse público e dos serviços públicos na realização do bem comum.

O desafio que está colocado às esquerdas europeias é se são capazes de convergir e erguer uma proposta renovada e adequada aos desafios do nosso tempo, mobilizadora e alternativa à escala europeia. Solidária com o mundo do trabalho e com o movimento social de protesto que vai crescer. Recusando ceder à deriva nacionalista. Com um projecto europeu avançado, social, pacífico e progressivo. Aprendendo as lições da história e convergindo no combate por uma União Europeia mais democrática, mais coesa e mais avançada, que sustente a moeda única numa coordenação económica e política reforçadas, sem a qual o euro revela todas as suas fragilidades e instabilidade e a propagandeada unidade europeia se rompe ao primeiro embate crítico, incapaz e sem poder para gerir os conflitos de interesses.

Ou, se persistir a desorientação programática, o acantonamento nacional e a divisão reinante, se o descontentamento social em crescendo vai ser sobretudo capitalizado pela direita xenófoba, demagógica e populista, deixando o movimento social sem uma alternativa política de progresso.

É tempo de aprofundar o debate e reforçar o combate, em Portugal e na União europeia, por um Contrato Social renovado que impeça o retrocesso civilizacional e social que o neoliberalismo, de mãos dadas com o grande capital financeiro, à boleia desta crise, querem instalar no espaço europeu.

Estes, quais aprendizes de feiticeiro, poderão desencadear um retrocesso civilizacional, político e social e conflitos de interesses de graves consequências sociais e políticas, ao arrepio das lições da história europeia, das suas revoluções progressivas e do seu movimento operário, que moldaram os avanços democráticos e as conquistas sociais hoje postos em questão.

A poderosa manifestação nacional da CGTP no dia 29 de Maio, as grandes mobilizações sociais em curso em Espanha, na França, na Roménia, na Itália ou na Grécia, demonstram a existência de forças, no mundo do trabalho e da cidadania, capazes de resistir à ditadura dos mercados e representam para as esquerdas o desafio de lhes darem projecção, representação política eficaz e propostas programáticas alternativas, credíveis e viáveis.

Interrogações (e não conclusões) finais

Estão então os sindicatos e os sindicalistas disponíveis para responder positivamente ao apelo de Carvalho da Silva na manifestação da CGTP (ver aqui a sua intervenção) para a unidade de acção,com efectiva autonomia e sem dependências do poder e de estratégias partidárias, para assumirem uma frente comum de valorização dos interesses do mundo do trabalho como componente central duma outra política que aposte primeiro nas pessoas, nos direitos e na economia real e capaz de obrigar Governo e patronato a uma negociação colectiva e uma concertação social que não sejam apenas fachada, mas antes componentes efectivas duma democracia de base social mais ampla e robusta?

Está a UGT disponível para corresponder ao apelo do seu fundador Torres Couto, em entrevista televisiva no dia da manifestação, para assumir a necessidade da unidade e do protesto dos trabalhadores, rompendo com o seu comprometimento e dependência das políticas do bloco central, chocantemente expresso nas recentes declarações de João Proença?

Há disposição e vontade à esquerda, em Portugal, para agregar forças para esta empreitada e romper com a inevitabilidade e a fatalidade das receitas que há 30 anos a maioria dos economistas e analistas que circulam entre o poder político, as assessorias, administrações e canais de TV nos impingem, sempre em nome do superior interesse nacional, de facto para benefício duma minoria no país mais desigual da União Europeia?

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Henrique Sousa
Membro da direcção da ATTAC Portugal

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