quarta-feira, 9 de março de 2011

A manipulação política da linguagem


por  José María Zufiaur — Conselho Científico da ATTAC Espanha

Um dos maiores logros do neoliberalismo é a manipulação da linguagem, com a qual cimentou em grande medida a sua hegemonia ideológica. Entre as principais tarefas dos numerosos think tanks que trabalham ao serviço do novo capitalismo, encontra-se a de mistificar as suas mensagens ideológicas mediante uma utilização fraudulenta da linguagem. Os partidos de governo usam a mesma técnica que estes centros de alimentação ideológica neoliberal: além de que muitos dos responsáveis das áreas económicas dos governos provém destes núcleos de pensamento.
Por exemplo, a palavra reforma já não significa melhoria, mas retrocesso. A solidariedade não consiste em redistribuir dos ricos pelos mais pobres, mas em favorecer os ricos à custa dos pobres ou, pelo menos, numa solidariedade apenas entre pobres. A igualdade é cada vez menos uma igualdade entre classes para se tornar quase exclusivamente uma igualdade entre sexos. Empregabilidade não quer dizer que o Estado e a sociedade vão favorecer o emprego com políticas estruturais, além dos subsídios que mais não fazem do que modificar o lugar que os desempregados ocupam na fila do centro de emprego, mas sim que cada desempregado e cada trabalhador (potencial desempregado) devem converter-se em "empresários de si próprios". Garantir as pensões não significa que no futuro os reformados venham a ter uma reforma — como percentagem do seu último salário — igual ou melhor que a actual, mas apenas que as pensões públicas não vão desaparecer; ainda que dentro de 40 anos as pensões de reforma abaixo do limiar de pobreza devam atingir cerca de 50 ou 60% dos pensionistas; algumas previsões apontam para que em 2030 a percentagem de pensionistas pobres na UE atinja os 40%. Há poucos anos esta percentagem era de 20% e em Espanha de 28%. Significa ainda que as pensões privadas financiadas pela fiscalidade pública deverão crescer.
Também uma "saída social" da crise não consiste em prever que os mais favorecidos com a mesma sejam os trabalhadores e as classes médias, mas sim as grandes fortunas. "Privilégio" são agora os direitos laborais dos trabalhadores "normais"; não o abuso pelos grandes administradores do direito laboral para gozar de bónus, aposentações ou escandalosos contratos blindados, entendidos agora como "justas remunerações".  Ainda assim, julga-se admissível e lógico — e não sarcástico nem infame — propor aos desempregados, aos precários, aos que têm empregos a tempo parcial porque não conseguem um a tempo inteiro, aos jovens que continuam bolseiros aos trinta e muitos anos, que "trabalhem mais para ganhar mais".
Finalmente e entrando no tema que pretendo abordar, chama-se segmentação (do mercado de trabalho) à precariedade. Em vez de chamar-lhe, numa versão actualizada, exército de reserva do capitalismo.
Segmentação essa que, ainda por cima, é produzida pelos obstáculos que os trabalhadores que já estão no sistema de trabalho (insiders) põem à entrada dos que estão fora (outsiders). De acordo com o pensamento económico dominante, os primeiros, com os seus privilégios, protecções e direitos adquiridos impedem a entrada no mercado de trabalho dos segundos.
A primeira manipulação da questão é a afirmação de que esta segmentação laboral foi criada pelo suposto egoísmo dos trabalhadores e não pelos interesses do capital. Certo é que quem criou a segmentação e a dualidade — a precariedade, em suma — do mercado de trabalho, em Espanha como em muitos outros países, foram os governos e as suas políticas. Políticas que alimentaram um segundo mercado de trabalho com o objectivo último de o tornar muito mais barato (em salários, em prestações sociais, em custos de despedimento). Mediante normas e subvenções de que se aproveitaram massivamente as empresas. Há que dizer que conseguiram parcos resultados a longo prazo sobre o emprego e consequências nefastas sobre a estrutura e a produtividade do nosso sistema económico. Sem que nenhuma das nossas sucessivas reformas, supostamente realizadas para acabar com a dita dualidade, tenham alterado a situação, a não ser para pior.
Estreitamente vinculada à anterior, a segunda manipulação desta apresentação do problema é que, precisamente porque a segmentação responde aos interesses do capital e não aos "privilégios" dos trabalhadores com emprego, grande parte dos denominados outsiders não estão realmente fora do mercado de trabalho, mas sim dentro. Formam parte do mesmo, uma parte muito cuidadosamente engendrada. Ainda que seja a parte mais débil do mercado laboral, é a sua principal variável de ajuste.
Após vinte e cinco anos de tais políticas, utiliza-se agora o argumento da segmentação, da dualidade laboral, para estender a instabilidade e a correspondente descida da remuneração do trabalho para o conjunto dos trabalhadores. Uma igualdade por baixo. Com o evidente objectivo de que todos passem à instabilidade: todos poderão ser despedidos com a mesma facilidade e com o mesmo custo (esta é, pelo menos, a pretensão) do que "desfrutam" os temporários. Por outro lado, isto não fará senão aumentar o já enorme volume de trabalhadores com baixos salários. Tudo graças aos entretanto aparecidos defensores dos trabalhadores dualizados e segmentados. Estes esclarecidos defensores dos trabalhadores precários reconhecem que as reformas realizadas não o foram para criar emprego, mas para igualar uns e outros, tornando-os a todos precários. Questão esta que, para atingir o objectivo, requer uma reforma da negociação colectiva que, resumidamente, a torne menos colectiva.
Também aqui, como em tantas outras coisas, a "saída social" da crise tem uma certa semelhança com o que vem acontecendo desde o "Consenso de Washington" (neoliberalismo com reconhecimento, pelo menos teórico, dos direitos laborais) até ao "Consenso de Pequim" (neoliberalismo com questionamento ou pura e simples negação dos direitos laborais e sindicais mais fundamentais). Prova disso são as políticas de alguns estados da União, nos EUA, contra a negociação colectiva e as propostas de governo económico e social e do pacto de competitividade europeus, que pretendem interferir nos salários e na autonomia colectiva.
A publicação, nos últimos dias, de um estudo por parte do instituto francês de estatísticas (Insee) desvendou algumas características pouco publicitadas do mercado de trabalho em França. Pôs também em evidência que a segmentação do mercado laboral encerra algo mais que a diferença na estabilidade no emprego entre trabalhadores temporários e fixos. O dado (correspondente a 2008) de que 6.250.000 de trabalhadores franceses ganham menos que 750 euros líquidos por mês, ou seja, 25 euros por dia ou menos, encheu as primeiras páginas de jornais e revistas daquele país. Imediatamente líderes políticos e comentadores "descobriram" que um quarto dos trabalhadores franceses está na precariedade. Que mais de 6 milhões de pessoas que trabalham não ganham, nem de perto, o salário mínimo (1365 euros brutos).
Este conjunto de trabalhadores é composto por estudantes que trabalham, recepcionistas, empregados de empresas de trabalho temporário postos à disposição do sector industrial, contratados a tempo parcial, pessoas que alternam empregos com situações de paragem ou que trabalham com contratos subsidiados para entidades públicas ou privadas. Quem integra este universo de subemprego são fundamentalmente mulheres (58%) e jovens (37%). Dois terços destes trabalhadores ocupam um posto a tempo parcial e o outro terço a tempo completo, mas por curtos períodos de tempo.  Grande parte deste tipo de trabalhadores concentra-se no sector dos serviços (caixas de supermercados, assistência ao domicílio de pessoas dependentes, entrega de pizzas), mas 15% trabalha para o sector público.
Finalmente, esta premissa do serviço estatístico francês permitiu destacar — lá, como cá — várias questões importantes. A primeira e fundamental é que, por detrás do eufemismo da segmentação, pretende-se ocultar uma grande precariedade do mercado de trabalho. Precariedade essa que vai além dos contratos temporários a tempo completo e se estende a outras situações de subemprego, de que se fala muito pouco. Ainda menos se alui ao tema fundamental do nosso mercado de trabalho: a sua grande percentagem de baixos salários. Mais de 68% dos nossos assalariados, segundo os estudos do Professor Carlos Prieto, ganhavam há um par de anos menos de 1100 euros brutos por mês. É fundamental o conhecimento de como esta questão afecta o modelo laboral que temos e como irá afectar a reforma que decorre, assim como a que fica por concretizar sobre negociação colectiva, na contratação de novos trabalhadores e na sua protecção social presente e futura.  Ou seja, apesar de todas as maquilhagens verbais, esta é a questão central que está em jogo.
O caso francês pôs em evidência, além de tudo o mais, que as estatísticas oficiais apenas reflectem os salários médios dos trabalhadores a tempo completo. Pela primeira vez realizou-se em França um estudo público dos contratos deste universo de subempregados e não seria redundante fazer algo semelhante em Espanha. Esta invisibilidade dos trabalhadores precários não é produto apenas da estatística. É também consequência da falta de divulgação de casos reais, do anonimato de quem vive na precariedade. E ainda da incapacidade sindical, com as suas estruturas tradicionais, de representar este tipo de trabalhadores temporários, precários, com empregos parciais e horários ou organização do trabalho totalmente desestruturados.
Finalmente, segundo um dos especialistas franceses em organização do trabalho e economia do emprego, Philippe Askenazy — que acaba de publicar Les décennies aveugles. Emploi et coissance 1970-2010 — esta situação francesa resulta de três décadas de políticas de emprego a que ele chama contra-produtivas e que "ajudaram, a juntar aos 3 milhões de desempregados, a criar um novo exército de reserva do capitalismo, papel desempenhado nos anos 60 pela imigração".
Entre as políticas de emprego experimentadas em França, Askenazy refere a execução por Rymond Barre de: contratos a termo subsidiados (à semelhança do nosso Contrato de Incentivo ao Emprego de 1984). Refere ainda a política de Martine Aubry que, além de implantar a jornada semanal de 35 horas, pôs em marcha o modelo "polders" holandês, ou seja, o subsídio dos contratos a tempo parcial (semelhante ao que acaba de entrar em vigor no nosso país). A conclusão deste professor francês é que este tipo de iniciativas criaram nalguns casos um "efeito pechincha" (as empresas são subsidiadas por contratações que de qualquer forma iriam realizar) e noutros, como no caso do subsídio do tempo parcial, criaram mais postos de trabalho (ainda que estatisticamente seja difícil determinar se o incremento seja devido aos subsídios aos contratos a tempo parcial ou à lei de redução da jornada), mas não o volume global de horas trabalhadas. O que, entre outras coisas, se traduziu num benefício para os grandes supermercados, cuja política consiste em fazer face às horas de ponta dos hipermercados (25 horas por semana) com contratos a tempo parcial de 26 horas semanais.
Askenazy conclui que o custo deste tipo de políticas (vinte mil milhões de euros) teria sido melhor empregue na criação de empregos directos em serviços públicos com défice de efectivos, tais como o ensino ou a saúde. E termina afirmando que a primeira medida para mudar o rumo ao mercado laboral precário deveria consistir num exemplo da própria Administração Pública, não fazendo contratações desta forma.
Em suma, a segmentação, a precariedade, não é um "mal espanhol", ainda que o nosso seja um dos casos mais extremos, mas afecta de formas diferentes a maior parte dos países europeus. É um mal do novo capitalismo. É ainda necessário concluir que as "décadas cegas" em termos de políticas de emprego não parecem, infelizmente, prestes a terminar. Em vez de perguntarmos em que sectores ou produtos o nosso país pode ser mais competitivo e com que tipo de desenvolvimento económico se pode criar emprego sustentável, continuamos a insistir que as soluções passam por uma maior desregulamentação das normas laborais e da negociação colectiva. Estão por verificar os resultados da nova reforma laboral, mas durante esta crise ficou bastante claro que os países com piores resultados em termos de emprego foram aqueles que têm um mercado de trabalho mais desregulamentado ou onde, apesar da lei e para seu maior escárnio, há uma prática que a ultrapassa: Estados Unidos, Irlanda e Espanha.

Artigo publicado em Sistema Digital

Tradução do castelhano de Helena Romão

(imagem: Artigo 21.º)

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