domingo, 4 de abril de 2010

Portugal, S.A.

«"Agência baixa rating de Portugal e força PS e PSD a entender-se sobre o PEC." Esta afirmação fez a manchete do PÚBLICO no passado dia 25 de Março de 2010, dia em que a Assembleia da República votava o Plano de Estabilidade e Crescimento da economia portuguesa até 2013. A manchete e o destaque do jornal que a suportava passou normalmente entre a espuma dos dias, sem causar escândalo, nem motivar reflexões na opinião publicada.
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Ninguém parece ter estranhado que a aprovação parlamentar do plano que irá reger a economia estatal nos próximos anos estivesse a ser aprovada sob pressão de empresas privadas que representam interesses financeiros, como se fosse normal que a gestão política dos Estados esteja submetida à lógica do mercado. Ninguém se espantou com a transparência com que ficou patente que Portugal afinal é governado como uma empresa: a Portugal, SA que está integrada na holding União Europeia. Exagero? Vejamos.
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A notícia dessa manchete tinha como ponto de partida a análise jornalística do facto de uma agência de rating, a Fitch, ter descido a nota de Portugal de AA para AA-, ou seja, ter determinado que é maior o perigo para quem empresta dinheiro ao Estado português de não reaver o seu dinheiro. E alertava para o risco de a nota dada pela Fitch poder descer se o PEC fosse chumbado, avisando ainda que se esperava agora a avaliação e notação de Portugal feita pelas outras duas principais agências de rating, a Standard & Poor"s e Moody"s.
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O PÚBLICO citava mesmo um responsável da Fitch, Douglas Renwick, a explicar que, "no cenário base" com que esta agência operou para baixar a classificação de Portugal, tinha partido do princípio que "os dois principais partidos políticos em Portugal conseguem chegar a um acordo relativamente às medidas de consolidação orçamental". Caso contrário, lançou o aviso de o país baixar mais nas classificações desta agência. "Se, a determinada altura, se tornar claro que as alterações na legislação necessárias ao esforço de consolidação não vão ser aprovadas", o rating de Portugal "pode ser ainda mais afectado".
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Mas a análise jornalística da pressão explícita que estava a ser feita sobre os deputados não foi redigida de forma leviana com base apenas nas declarações de um responsável de uma agência privada de avaliação de mercado. Não. O próprio ministro das Finanças do Governo português, Teixeira dos Santos, afirmou pública e oficialmente que este risco era real e, mais do que real, ele era vital para a lógica que determina hoje em dia a gestão política do Estado português. "Espero que a Assembleia da República sinalize claramente que Portugal tem condições para levar a cabo a política delineada no PEC, afastando essa hipótese de uma vez por todas."
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Se dúvidas houvesse de que o representante da Fitch estava a esticar a real capacidade de influência de uma empresa privada sobre o poder político democraticamente eleito em Portugal, o ministro das Finanças veio desfazê-las com o alerta para que os deputados - que supostamente são independentes de influências e devem agir de acordo com o que entendem ser os interesses do país - não se atrevessem a chumbar o PEC, que estava feito, aliás, de acordo com as regras que obedecem à lógica de mercado, como é norma, aliás, na União Europeia.
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Até porque não é segredo para ninguém que quer o Banco Central Europeu, quer as outras instituições financeiras internacionais, baseiam as suas decisões sobre a atribuição internacional de crédito aos Estados precisamente nas indicações destas três agências, a que dão credibilidade e a que vêem como emissores de avaliação e notação sobre o risco da dívida e a fiabilidade de pagamento dos mesmos Estados. Assim como não é segredo para ninguém que estas agências têm interesses no mercado que avaliam, são propriedade de grupos financeiros e funcionam também como consultoras de empresas, para quem elaboram pareceres. Ou seja, são avaliador e avaliado, pois aconselham aqueles que avaliam. Pelo que, de conflito de interesses, estamos conversados.
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Para além da questão da isenção e mesmo passando ao lado da qualidade das avaliações em causa - é bom não esquecer que os famosos bancos que faliram em 2008 estavam avaliados precisamente por estas excelentes agências de rating -, há uma questão mais central e mais estruturante que esta notícia põe em causa e com a qual ninguém parece estar muito preocupado em Portugal.
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É que é suposto um Estado democrático de direito ser gerido por um governo de representantes políticos, eleitos pelo voto soberano popular, e escolhido entre o escol que é apresentado a sufrágio pelos partidos. Aliás, os partidos são mesmo a estrutura de representação popular no exercício do poder, em que os eleitores delegam a função de gerir o Estado de acordo com o interesse geral e em obediência ao princípio de igual tratamento de todos perante a lei. E é também suposto que os partidos e os seus eleitos sejam independentes e não cedam a interesses privados, antes defendam o interesse de todos.
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Só que o que esta manchete do PÚBLICO e o destaque do jornal de dia 25 de Março mostram é que afinal a realidade é outra. O que é verdade é que quem manda no Estado português e decide sobre as orientações políticas que são dadas à governação não é o soberano representado pelos deputados eleitos, mas os interesses económicos internacionais, obscuros porque não democraticamente eleitos.
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Pode quem quiser achar e proclamar que estas considerações não passam de "conversa comunista". A gratuita acusação de comunista é, aliás, uma forma de estigmatização comum hoje em dia, uma espécie de anátema destinado a excluir e a calar quem diverge. Ainda que esta reflexão seja considerada como uma apreciação que coincide com o que os comunistas dizem, esta é a realidade: os interesses financeiros internacionais sobrepõem-se e determinam decisões políticas de governação do Estado português. Simplificando: afinal, quem governa Portugal é a Fitch, a Standard & Poor"s e a Moody"s, e o país virou uma Portugal, S.A.»
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São José Almeida, Público 03/04/2010

(Imagem: Fotos Gratis)

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