sexta-feira, 7 de maio de 2010

A comédia da condecoração presidencial de um dos responsáveis da crise na Europa

O Presidente da República Portuguesa condecorou com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique o Governador do Banco Central Europeu, Jean-Claude Trichet, pelo que afirmou ser a sua " contribuição notável para a elaboração de uma união monetária europeia, no papel internacional do euro e na preservação da estabilidade de preços na Europa".

Suprema hipocrisia esta de ser condecorado em Portugal um dos principais responsáveis pelo agravamento da crise económica e financeira na Europa! O mesmo que, quando a crise do chamado "subprime" explodia nos EUA e contaminava o sistema financeiro mundial, continuava alegremente com a sua receita de elevação das taxas de juro na Europa em nome do sacrossanto combate à inflação (enquanto os EUA as desciam justamente para proteger a sua economia). Que, fidelíssimo executor duma União Económica e Monetária e do garrote do Pacto de Estabilidade e Crescimento, pôs o BCE a emprestar aos bancos a juros de 1% milhares de milhões de euros para os salvar da falência, mas aconselha agora os países da zona euro a serem rigorosos na aplicação de medidas anti-sociais e no apertar do cinto dos seus cidadãos para protegerem as finanças públicas. E que reafirma, como sucedeu hoje nas entrevistas dadas a uma imprensa portuguesa solícita e benevolente, que a função do BCE é controlar a inflação.

É este o Banco Central Europeu, concebido na base duma falsa independência e sem controlo dos poderes políticos eleitos, em nome da orientação monetarista e neoliberal imposta à construção europeia e ao euro pelos grandes países como a Alemanha, que tem como missão o controlo da inflação, mesmo com sacrifício do combate ao desemprego e da coesão social europeia, que não constam entre as suas missões. Que não pode emprestar fundos aos Estados-membros em dificuldades (por exemplo, comprando títulos da dívida pública desses países) e os obriga a recorrer a empréstimos a juros elevados no mercado, para gáudio dos bancos, dos especuladores, das agências de rating e de outros abutres dos mercados financeiros.

É, pois, uma tragicomédia, que um Presidente da República português condecore Trichet, que se tem assumido como um dos principais obstáculos à necessária mudança de rumo da União Europeia para enfrentar com sucesso a crise, evitar o colapso do euro e o risco de desagregação da UE.

Cavaco Silva condecorou um personagem que tem estado na primeira linha das políticas que prejudicam os países da União Europeia com economias mais frágeis e dependentes, como Portugal, e que se tem distinguido como executor das políticas que interessam aos grandes países exportadores, como a Alemanha, que confundem a Europa com os interesses dos seus grupos económicos e financeiros.

Ou seja, um responsável do BCE que tem provado ser um obstáculo às medidas de estímulo ao crescimento, às medidas que tardam de controlo e regulação efectivas do sistema financeiro para pôr fim à ditadura dos mercados, para evitar o retrocesso de todo o processo de construção política europeia, para acompanhar a defesa do euro das necessárias medidas à escala europeia propostas por um número crescente de especialistas que não alinham nas teorias neoliberais responsáveis pela crise: reforço orçamental da UE, alteração das competências do BCE e sua colocação ao serviço do crescimento económico e do emprego, criação de títulos de dívida pública europeus para apoio aos países em dificuldades, criação duma agência pública europeia de rating, reforço da cooperação e coordenação política e económica, etc.

Cavaco Silva deu assim, não só um sinal de subserviência política lamentável face aos mais poderosos, como demonstrou o seu alinhamento com as orientações económicas e financeiras que estão a agravar a crise económica e financeira e a causar um retrocesso político na solidariedade e na construção europeias.

Ficou aliás bem acompanhado nesta sua postura, pelas declarações vergonhosas do ainda Governador do Banco de Portugal, Vítor Constâncio, que hoje, piscando o olho à direita, disse à imprensa ver com bons olhos a anulação de importantes investimentos públicos e defendeu a antecipação para este ano do máximo de medidas anti-sociais previstas no PEC sustentado pelo "bloco central" do PS e PSD. Para o futuro Vice-Governador do BCE, Portugal, que é já um dos países há muitos anos com menor crescimento económico e com um dos mais baixos investimentos ´públicos da União Europeia (e é o investimento que pode gerar crescimento e emprego), deveria acentuar e acelerar ainda mais todas as medidas de carácter recessivo e geradoras de mais desemprego, mais injustiça e mais desigualdade social. Como se costuma dizer, "mostrou serviço" ao seu futuro chefe Jean-Claude Trichet e mostrou mais uma vez porque é que, enquanto Governador do Banco de Portugal, esteve sempre tão distraído em relação aos crimes e irregularidades cometidas pelo sistema financeiro e porque foi aceite a sua candidatura ao BCE ("les bons esprits se rencontrent").

Com elites políticas e económicas assim, não vamos lá, não nos safamos!

É preciso e é urgente substituir estas elites que, alternando ao longo dos anos no poder, sempre exigem sacrifícios aos mesmos em nome das crises que as suas políticas geram ou agravam, ao mesmo tempo que vão sempre e sempre concentrando cada vez mais a riqueza e agravando as desigualdades no País já mais desigual da União Europeia.
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Perante estes comportamentos de altos responsáveis políticos, mais vontade nos dá neste momento de proclamar: somos todos gregos!

É preciso passar a palavra e juntar forças, para tornar possível outro rumo para Portugal, para o libertar da ditadura dos mercados financeiros e para regenerar uma democracia política manchada pelo permanente incumprimento das promessas e compromissos e com um poder político capturado pelos interesses económicos.

Henrique Sousa
Membro da Direcção da ATTAC Portugal
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