domingo, 25 de julho de 2010

Os "políticos" que paguem a crise? E o capital, senhores?

O bispo auxiliar de Lisboa da Igreja Católica, Carlos Azevedo, propôs que os "políticos" contribuíssem com 20% do seu salário para um fundo contra a pobreza, logo seguido de um coro de comentários e manifestações de disponibilidades várias, que raramente sublinharam a marginalidade dessa medida no combate à crise.

Como não me enquadro na definição de "políticos" que é suposto serem o alvo do bispo, e como um simples cidadão interveniente no que usualmente se designa por sociedade civil, sacrificado como a maioria dos portugueses pelos PECs que se vão abatendo sobre as nossas bolsas e cabeças, negociados pelo bloco (central?) PS/PSD em nome do interesse nacional e intercalados de convenientes arrufos no meio do namoro, estou à vontade para produzir o seguinte desabafo:

Estou mais que farto deste discurso, às vezes também alimentado por partidos e parlamentares que cedem à pressão da opinião publicada, do mainstream e da demagogia em roda livre que vai proliferando na conversa da rua, de que, "para darem o exemplo", os "políticos" devem aplicar a si próprios uma redução simbólica e enternecedora nos vencimentos em nome do combate à crise. Nada tenho contra a contribuição voluntária dos cidadãos, “políticos” incluídos, para minorar solidariamente a gravidade dos problemas sociais e das desigualdades. Mas quem acredita seriamente que é com este tipo de apelos e remédios que se resolve a Questão Social e a crise em Portugal?

Porque este discurso, para não dizer esta treta, para lá das boas intenções (e o inferno está cheio delas, ao que consta), além de meter no mesmo saco “políticos” com convicções e práticas distintas, visa objectivamente um outro alvo principal, que não são os políticos, mas a maioria dos cidadãos, e uma motivação escondida e central:

O "sacrifício" simbólico dos políticos serve para legitimar na praça pública a convicção da bondade e justeza dos sacrifícios bem maiores impostos pelo poder político à maioria dos portugueses, sobretudo a quem vive do seu trabalho, aos reformados e desempregados, tendo por base a ideia de que todos devem sofrer, nas suas bolsas e nas suas vidas, para superar a grave crise que a Pátria atravessa. E, se o exemplo de "sacrifício" vem dos políticos, então os governantes estão moralmente justificados para cortarem nos subsídios de desemprego e outros apoios sociais, congelarem e reduzirem de facto os salários dos trabalhadores, aumentarem os impostos de quem trabalha. E assim o "exemplo" de cima vai servindo para convenientemente justificar a aplicação aos de baixo dos PECs em uso e dos que se preparam.

Se a pancada nas remunerações das elites do poder político (os "políticos") pode ser rendosa para um discurso social e político de cariz populista, para desviar a atenção das políticas e das causas e para justificar, pela conversa fiada do "exemplo", medidas anti-sociais, já não resiste à prova dos factos e do bom senso.

Veja-se o estatuto remuneratório dos deputados (ver aqui): pode dizer-se que a remuneração mensal de um deputado - 3 815 € - é muito elevada? Discuta-se a produtividade de alguns, discuta-se a sua qualidade. Mas tem algum sentido discutir estes salários dos representantes eleitos dos portugueses, e também dos outros titulares de cargos públicos, baixos por comparação com outros Estados, e sobretudo por comparação com o que ganham altos quadros, gestores e administradores de grandes empresas públicas e privadas (sem esquecer as municipais, muitas delas de utilidade discutível)? Então não é sabido por todos neste país que não são as remunerações ordinárias que enriquecem os “políticos”, mas a corrupção a que alguns (insista-se, alguns!, pois não contem connosco para meter todos no mesmo saco) cedem, quando a carne é fraca, os valores e princípios estão por baixo e a cupidez e os corruptores privados falam mais alto?

O que é espantoso é que até a douta e santa madre Igreja, senhores, já embarque nesta conversa da tributação especial dos políticos para combater a crise social, desviando-se do alvo principal. Mas é assim que se combate eficazmente a crise social e a pobreza cada vez mais larga e intensa? Sem ir à raiz das coisas, ficando apenas pelas consequências e não começando por confrontar os poderes políticos no domínio das políticas, o capital, na tributação dos seus recursos e interesses?

Porque é que o bispo auxiliar de Lisboa não se lembrou antes de pôr o dedo na ferida e exigir em primeiro lugar uma quota maior de sacrifícios e de contribuições para o erário público aos que estão na origem desta crise e continuam a lucrar com ela - o sistema financeiro, os grandes grupos económicos, os seus administradores e gestores que continuam a ser remunerados em função dos resultados de curto prazo e do sobe e desce bolsista?

Segundo o Relatório Anual sobre o Governo das Sociedades Cotadas em Portugal relativo a 2009 emitido pela insuspeita CMVM, a remuneração anual per capita dos membros executivos das Administrações foi de 595 149 € (se considerarmos apenas as empresas do PSI 20, foi de 782 213 € per capita). E podíamos lembrar os fartos lucros obtidos pelo sector financeiro e pelos grandes grupos económicos, o facto provado de Portugal ser o país com maior desigualdade social na Zona Euro e um dos mais desiguais na Europa, os 2 milhões de pobres, etc. Mas paremos por aqui em matéria de dados.

É o destino?

Deste modo, os mesmos que nos entretêm com este discurso, agora, pelos vistos, com a Igreja a ajudar caritativamente à festa e ao sermão, retomam fatalisticamente a velha máxima da Thatcher de má memória (era a TINA - There Is No Alternative! -, lembram-se?) para nos convencerem, com a benevolente ajuda do FMI e da União Europeia, que não existe outra estrada senão esta penitência que nos cai em cima. E que é chegada a hora de cumprir o sonho ultraliberal de o mercado tudo invadir, convertendo de passagem o Estado social numa saudade e em mais um grande negócio privado e seguro para alguns. Porque o capital, por cá, gosta de medrar, mas à sombra de negócios seguros, não é? Em que o risco é do Estado e o lucro dos privados.

Não fugir à questão central: a mais justa repartição da riqueza e a sua redistribuição pelo Estado!

Entretanto, os governantes continuam a esquecer-se convenientemente de impor aos bancos o pagamento da mesma taxa de IRC das empresas (25%), ou de taxar os movimentos de milhares de milhões de euros que migram de Portugal para os paraísos fiscais (enquanto é preciso, a preço elevado, ir buscar capitais lá fora para financiar a despesa pública e privada), ou de aplicar um imposto a sério sobre as grandes fortunas, ou de aplicar uma taxa especial a sério sobre os lucros das grandes empresas. Tudo propostas que permitiriam reduzir proporcionalmente a carga sobre “os de baixo” e que já têm sido defendidas pelos partidos à esquerda do PS (BE e PCP), mas que PS e PSD em bloco (central?) se encarregam de bloquear e ignorar. Ou seja: os que mais e primeiro deviam pagar pela crise, porque estiveram na sua origem - o sistema financeiro, bancos, fundos predadores, especuladores, paraísos fiscais - continuam convenientemente protegidos e apoiados, depois de muita conversa sobre regulação, controlo e moralização. O business as usual está de volta!

Para que não se diga que a Igreja não diz também coisas interessantes

Como começámos este texto usando como tema de reflexão a crítica ao desacerto de uma sugestão pública de um alto responsável da Igreja, vamos fechar com uma referência a um texto papal, bem mais fecundo e indutor de reflexões para a acção colectiva, política e social que é preciso para construir alternativas e não ir na corrente.

Falamos da encíclica Laborem Exercens, em que o finado João Paulo II, reflectindo sobre o trabalho e o capital, proclamava que “pertence ao património estável da Igreja” e ao “domínio da ordem da moral social” “o princípio da prioridade do « trabalho» em confronto com o «capital»”. Talvez valesse a pena que a Igreja portuguesa, em visível recuo na sua reflexão e intervenção sobre o mundo do trabalho, tivesse isto como um bom ponto de partida para não ficar pelo discurso sobre as consequências e para convergir coerentemente com “os de baixo”, distanciando-se dos “de cima!” no esforço de ir à raiz das coisas e buscar caminhos alternativos, que não sejam mais do mesmo.

(Henrique Sousa, da Direcção da ATTAC Portugal)

Paco Ibañez - Lo Que Puede El Dinero


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