Para restabelecer a sanidade na política: obrigado, Jon Stewart!
Bem hajas, Jon Stewart, por teres convocado o comício cidadão com 250 000 participantes, em Washington, para "restabelecer a sanidade" na sociedade norte-americana, profundamente fracturada e sujeita ao assalto da nova versão fundamentalista e sectária da extrema-direita abrigada à sombra do movimento "Tea Party". Uma grande manifestação de cidadãos comuns, não contra os partidos, mas por uma democracia saudável (ver imagens e notícias aqui e aqui e uma notável selecção de cartazes dos participantes aqui).
Claro, sou suspeito. Sou um grande apreciador do Daily Show, de Jon Stewart, que promove uma bem humorada, notável e quotidiana reflexão crítica sobre a política e a sociedade norte-americanas, combatendo quer a a captura dos Republicanos pela extrema-direita religiosa e xenófoba, quer a cobardia, a cedência, o comprometimento com os grandes interesses e a falta de palavra de que os Democratas dão provas, quer a manipulação maniqueísta e primitiva do espaço público e dos média, de que a Fox News e os fundamentalismos religiososos são exemplos maiores. Em nome da necessidade de nos sabermos ouvir uns aos outros, porque só temos este planeta para (sobre)viver.
Jon Stewart não é sequer um radical de esquerda (no sentido de ser da esquerda transformadora e ir à raiz das coisas). Mas é um observador participante, crítico e lúcido da realidade norte-americana e fartou-se do espectáculo deplorável fornecido pelas elites do establishment, sem escrúpulos, sem palavra e cada vez mais medíocres. As quais dominam o espaço público e exploram em seu benefício as angústias, os medos e a insegurança de cidadãos apanhados no tsunami da crise, da insegurança, do desemprego e das incertezas do mundo. Cidadãos que se tornam presa fácil da incultura primitiva e interesseira das Sarah Palin & Cª e dos movimentos fundamentalistas de extrema-direita, que oferecem respostas primárias e irracionais servindo à maravilha os interesses da elite do aparelho financeiro/militar/industrial e desviando as atenções das suas responsabilidades essenciais na crise financeira e económica que desencadearam e de que são directos beneficiários. Afinal, já o poder romano tinha aprendido que "pão e circo" e a divisão dos oprimidos ajudavam muito a proteger a continuidade do sistema.
Como observou lucidamente Chomski nas suas intervenções nas conferências que realizou em Paris (reportadas pelo Le Monde Diplomatique - ed. portuguesa de Julho; ver aqui uma das suas intervenções), as pessoas atraídas pelo movimento Tea Party sofreram ao longo dos últimos 30 anos de transformação neoliberal do capitalismo e não compreendem necessariamente porquê. Trabalhadores, cristãos, tendo estado no serviço militar, tendo feito tudo o que lhes foi exigido, de repente enfrentam o desemprego, a execução das hipotecas do crédito à habitação, sentem as suas vidas a desmoronar-se, os valores que lhes são caros a desaparecer, enquanto os dinheiros públicos são destinados à salvação dos banqueiros. Como diz Chomski, "São preocupações autênticas. Estão talvez mal formuladas, mas são perfeitamente justificadas. E não serve de nada ridicularizá-las. Estas pessoas são precisamente aquelas que a esquerda devioa organizar. Mas não o faz."
Jon Stewart provou com a sua iniciativa que existe ainda uma grande e lúcida força cidadã no coração do império, portadora do melhor da herança da cultura popular, da solidariedade, da participação e do pensamento crítico na sociedade norte-americana, que não desiste de combater contra o preconceito sectário e primário, pela racionalidade, pela pluralidade, pelo debate político esclarecido e pela tolerância, como fundamento das escolhas políticas numa sociedade democrática.
Oxalá a esquerda norte-americana, também a europeia e a portuguesa, tirem as necessárias lições deste evento. Antes que seja tarde. Porque o espectro da intolerância, da xenofobia e do racismo, misturado com a exploração demagógica da "libertação" dos cidadãos da tutela do Estado capturado pelos interesses, também assombra a Europa e está aqui a cativar perdedores da crise e camadas médias assustadas e receptivas a explicações fáceis para problemas difíceis.
E em Portugal?
Quando tomamos a iniciativa cidadã de nos mobilizarmos para restabelecer a saúde política e social desta democracia profundamente flagelada pelo bloco central de interesses responsável da crise, seu directo beneficiário e promotor dos PECs que a vão agravar?
Ou vamos permitir que alguma coisa mude (de Sócrates para Passos Coelho) para que tudo continue na mesma, ou pior?
(Henrique Sousa, da Direcção da ATTAC Portugal)
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