A receita de Eric Cantona e o combate para desarmar e controlar os mercados financeiros
Eric Cantona tem vindo a defender, na sua intervenção pública e em vídeos disponíveis na Web, que destruir o poder do sistema financeiro passa simplesmente pelo levantamento massivo, pelos cidadãos, dos seus depósitos, conduzindo ao desmoronamento do sistema bancário. Pelas suas próprias palavras, explicando que não acredita na eficácia das manifestações e da greve, Cantona propõe: “manifestarmo-nos na rua, para quê? Não é eficaz… O sistema é construído sobre o poder dos bancos, logo pode ser destruído pelos bancos. Em vez de ter três milhões de pessoas na rua, esses três milhões podem ir à banca, retiram o seu dinheiro e os bancos entram em derrocada”. Ou, noutra declaração, prevê que “se vinte milhões de pessoas retirarem o seu dinheiro, o sistema desmorona-se: sem armas, sem sangue, sem mais nada.”
Mas é assim? Será que Cantona descobriu a pólvora? Será que o capitalismo contemporâneo e os mercados financeiros são desarmados deste modo, com um clique nos depósitos? Será que os trabalhadores, os cidadãos comuns, tomam assim o controlo das suas vidas e o poder de revolucionar o sistema?
A iniciativa de Eric Cantona é uma “provocação”, um impulso de protesto e indignação que tem o papel positivo de chamar a atenção para a responsabilidade criminosa do sistema financeiro nas causas da crise e no facto de ser igualmente o capital financeiro o principal beneficiário da crise com a brutal transferência de recursos públicos para os bancos em nome da sua salvação.
Tem esta proposta eficácia concreta ou está antes a vender uma ilusão, mesmo que bem-intencionada e com algum impacto mediático, que se dissolve na espuma dos dias, em nada belisca os poderosos e desvia os cidadãos da acção colectiva verdadeiramente eficaz e transformadora?
Os cidadãos comuns carecem, queiram ou não, no sistema de que são parte, de utilizar os bancos na sua sobrevivência, nos seus pagamentos e recebimentos diários.
A teia de relações entre a banca, a economia real, as poupanças e responsabilidades das famílias e os seus níveis massivos de endividamento à banca (com destaque para o crédito à habitação), a domiciliação da recepção dos salários mensais nos bancos como contrapartida de créditos e prática normal das empresas, o pagamento das reformas, subsídios de desemprego e outros benefícios sociais por transferência bancária, os pagamentos a fornecedores de serviços por débito directo, os depósitos a prazo e outros planos de poupança e investimento, tudo cria relações de dependência entre os bancos e a vida quotidiana das pessoas.
Se a iniciativa de Cantona tivesse sucesso, sabendo-se que os bancos mobilizam as poupanças depositadas para a espiral de criação de mais capital fictício através do crédito, poderia causar rupturas no sistema financeiro, mas que iriam afectar e fazer sofrer em primeiro lugar os que mais têm razões para combater o sistema e protestar contra ele: os assalariados, os desempregados e outros destinatários de benefícios sociais, os mais pobres e carenciados. Os ricos teriam e têm sempre outros meios de defesa, as contas em bancos estrangeiros e nos paraísos fiscais, património imobiliário e outros recursos, ouro, etc.
Cantona, como outros indignados com as malfeitorias e crimes do capital financeiro, não está a ter em conta a profunda mudança qualitativa do capitalismo nos últimos 30 anos, na base do chamado Consenso de Washington e do domínio da narrativa neoliberal, impulsionada politicamente por Thatcher e Reagan, mas logo de seguida convertendo em seus discípulos Clinton e a maioria da social-democracia europeia.
Combater eficazmente este capitalismo neoliberal exige compreender estas mudanças.
O capital financeiro passou nas últimas décadas a sistema dominante e global, com a liberalização e generalizada desmaterialização dos movimentos de capitais, a desregulação geral dos mercados de capitais, com a apropriação do conhecimento científico e dos recursos das novas tecnologias que permitem manipular as relações espácio-temporais. Sendo movido, nem por objectivos de investimento na economia real, nem pelas regras da concorrência, da oferta e da procura teorizadas pelos pais do liberalismo clássico, mas pela insaciável acumulação de capital fictício através de movimentos especulativos de criação de moeda bancária em espiral interminável, de que os esquemas de Ponzi (tendo Magdoff como sua ilustração maior nos EUA e a D. Branca como uma representante menor em Portugal) são mero exemplo e que sacrificam, encerram, despedem e deslocalizam unidades produtivas de acordo com os seus interesses.
Os mercados financeiros parecem um cavalo à solta, que tomou o freio nos dentes, estão incontroláveis e insaciáveis, usam a sua dinâmica global para controlar e subordinar Estados nacionais, para acelerar a redistribuição da riqueza em seu proveito, através da degradação dos salários, da desvalorização do trabalho e da destruição do compromisso social dos Estados-Providência. O capitalismo neoliberal busca elevar as suas taxas de rentabilidade e de lucro através da extensão do mercado a todas as esferas da vida humana e das relações sociais, tudo convertendo em mercadoria e tudo convertendo em fonte de especulação financeira.
Podem Cantona e mais alguns ter recursos e modos de vida que lhes permitam cumprir o que ele propõe. Mas os comuns, os que vivem do seu trabalho, os pequenos empresários, os que têm as suas poupanças em fundos e em títulos de divida, os que recebem por transferência bancária o vencimento, ou a reforma, ou o subsídio de desemprego, os pequenos empresários que dependem do banco para movimentar o seu negócio, os que têm créditos a pagar, estão presos ao banco como o doente renal à máquina de diálise. Cortar de repente a ligação não mata o sistema, mas dá cabo do doente. O regresso ao tempo das poupanças na gaveta ou no colchão também não é solução.
O caminho é certamente outro e mais exigente: a mobilização social e política contra as políticas e os PECs que, em Portugal e na Europa, promovem a recessão, o desemprego e a desigualdade e para a construção de alternativas a este estado de coisas. Para que o Estado, o poder politico e a economia real deixem de ser canibalizados e sugados pelo capital financeiro. Para cortar a relação promíscua do poder político com o mundo dos negócios. Para conquistar a autonomia relativa da decisão política perante o sistema financeiro. Para controlar e limitar os mercados financeiros, eliminar os paraísos fiscais que se constituíram em bases do crime organizado, da lavagem de dinheiro e da fuga de capitais, fazer a taxação efectiva das transacções financeiras à escala global e das mais-valias bolsistas. Para pôr fim a esta economia de casino, que não é o estado natural das coisas em sociedade que os comentadores situacionistas justificam, mas um modelo capitalista por cuja superação vale a pena lutar.
A Comissão Europeia, o Conselho Europeu, o Banco Central Europeu e os governos nacionais que participam nestes órgãos, ou deixam de se comportar como vassalos dos mercados financeiros e da sua ideologia neoliberal e orientam as suas políticas para a protecção da economia real, para o crescimento do emprego, para o primado do bem-estar dos cidadãos e da renovação e sustentação do modelo de protecção social, ou é o euro e o próprio projecto da União Europeia como espaço de cooperação e de paz que estarão comprometidos.
Não é com a iniciativa Cantona que vamos lá no combate e no desarme dos mercados financeiros predadores e que damos a volta a isto.
Decisivos, sim, serão a mobilização social e política pela defesa, renovação e sustentação do Estado Social face à ofensiva de que é alvo; o combate e a unidade de acção, nas empresas e no espaço público, contra o desemprego, a precariedade, a desvalorização do trabalho e dos salários, aproveitando o grande impulso de esperança que a Greve Geral constituiu; a exigência renovada de outra política que não aceite que o Estado português e a Europa sejam prisioneiros dos mercados financeiros; o esforço de convergência social e política à esquerda capaz de produzir alternativas a este capitalismo insaciável.
Renovar o apoio à campanha internacional da ATTAC para o debate e a exigência de uma taxa sobre as transacções financeiras internacionais (que continua em marcha e tem um sítio Web próprio - ver aqui e aqui), que seja reguladora e limitadora da especulação e constituinte de fundos aplicáveis no desenvolvimento humano, é também certamente um modo, embora limitado e modesto, de cada um e todos afirmarem utilmente o seu compromisso cidadão de combate contra esta economia de casino em que o capitalismo se converteu.
Henrique Sousa, da Direcção da ATTAC Portugal
Mas é assim? Será que Cantona descobriu a pólvora? Será que o capitalismo contemporâneo e os mercados financeiros são desarmados deste modo, com um clique nos depósitos? Será que os trabalhadores, os cidadãos comuns, tomam assim o controlo das suas vidas e o poder de revolucionar o sistema?
A iniciativa de Eric Cantona é uma “provocação”, um impulso de protesto e indignação que tem o papel positivo de chamar a atenção para a responsabilidade criminosa do sistema financeiro nas causas da crise e no facto de ser igualmente o capital financeiro o principal beneficiário da crise com a brutal transferência de recursos públicos para os bancos em nome da sua salvação.
Tem esta proposta eficácia concreta ou está antes a vender uma ilusão, mesmo que bem-intencionada e com algum impacto mediático, que se dissolve na espuma dos dias, em nada belisca os poderosos e desvia os cidadãos da acção colectiva verdadeiramente eficaz e transformadora?
Os cidadãos comuns carecem, queiram ou não, no sistema de que são parte, de utilizar os bancos na sua sobrevivência, nos seus pagamentos e recebimentos diários.
A teia de relações entre a banca, a economia real, as poupanças e responsabilidades das famílias e os seus níveis massivos de endividamento à banca (com destaque para o crédito à habitação), a domiciliação da recepção dos salários mensais nos bancos como contrapartida de créditos e prática normal das empresas, o pagamento das reformas, subsídios de desemprego e outros benefícios sociais por transferência bancária, os pagamentos a fornecedores de serviços por débito directo, os depósitos a prazo e outros planos de poupança e investimento, tudo cria relações de dependência entre os bancos e a vida quotidiana das pessoas.
Se a iniciativa de Cantona tivesse sucesso, sabendo-se que os bancos mobilizam as poupanças depositadas para a espiral de criação de mais capital fictício através do crédito, poderia causar rupturas no sistema financeiro, mas que iriam afectar e fazer sofrer em primeiro lugar os que mais têm razões para combater o sistema e protestar contra ele: os assalariados, os desempregados e outros destinatários de benefícios sociais, os mais pobres e carenciados. Os ricos teriam e têm sempre outros meios de defesa, as contas em bancos estrangeiros e nos paraísos fiscais, património imobiliário e outros recursos, ouro, etc.
Cantona, como outros indignados com as malfeitorias e crimes do capital financeiro, não está a ter em conta a profunda mudança qualitativa do capitalismo nos últimos 30 anos, na base do chamado Consenso de Washington e do domínio da narrativa neoliberal, impulsionada politicamente por Thatcher e Reagan, mas logo de seguida convertendo em seus discípulos Clinton e a maioria da social-democracia europeia.
Combater eficazmente este capitalismo neoliberal exige compreender estas mudanças.
O capital financeiro passou nas últimas décadas a sistema dominante e global, com a liberalização e generalizada desmaterialização dos movimentos de capitais, a desregulação geral dos mercados de capitais, com a apropriação do conhecimento científico e dos recursos das novas tecnologias que permitem manipular as relações espácio-temporais. Sendo movido, nem por objectivos de investimento na economia real, nem pelas regras da concorrência, da oferta e da procura teorizadas pelos pais do liberalismo clássico, mas pela insaciável acumulação de capital fictício através de movimentos especulativos de criação de moeda bancária em espiral interminável, de que os esquemas de Ponzi (tendo Magdoff como sua ilustração maior nos EUA e a D. Branca como uma representante menor em Portugal) são mero exemplo e que sacrificam, encerram, despedem e deslocalizam unidades produtivas de acordo com os seus interesses.
Os mercados financeiros parecem um cavalo à solta, que tomou o freio nos dentes, estão incontroláveis e insaciáveis, usam a sua dinâmica global para controlar e subordinar Estados nacionais, para acelerar a redistribuição da riqueza em seu proveito, através da degradação dos salários, da desvalorização do trabalho e da destruição do compromisso social dos Estados-Providência. O capitalismo neoliberal busca elevar as suas taxas de rentabilidade e de lucro através da extensão do mercado a todas as esferas da vida humana e das relações sociais, tudo convertendo em mercadoria e tudo convertendo em fonte de especulação financeira.
Podem Cantona e mais alguns ter recursos e modos de vida que lhes permitam cumprir o que ele propõe. Mas os comuns, os que vivem do seu trabalho, os pequenos empresários, os que têm as suas poupanças em fundos e em títulos de divida, os que recebem por transferência bancária o vencimento, ou a reforma, ou o subsídio de desemprego, os pequenos empresários que dependem do banco para movimentar o seu negócio, os que têm créditos a pagar, estão presos ao banco como o doente renal à máquina de diálise. Cortar de repente a ligação não mata o sistema, mas dá cabo do doente. O regresso ao tempo das poupanças na gaveta ou no colchão também não é solução.
O caminho é certamente outro e mais exigente: a mobilização social e política contra as políticas e os PECs que, em Portugal e na Europa, promovem a recessão, o desemprego e a desigualdade e para a construção de alternativas a este estado de coisas. Para que o Estado, o poder politico e a economia real deixem de ser canibalizados e sugados pelo capital financeiro. Para cortar a relação promíscua do poder político com o mundo dos negócios. Para conquistar a autonomia relativa da decisão política perante o sistema financeiro. Para controlar e limitar os mercados financeiros, eliminar os paraísos fiscais que se constituíram em bases do crime organizado, da lavagem de dinheiro e da fuga de capitais, fazer a taxação efectiva das transacções financeiras à escala global e das mais-valias bolsistas. Para pôr fim a esta economia de casino, que não é o estado natural das coisas em sociedade que os comentadores situacionistas justificam, mas um modelo capitalista por cuja superação vale a pena lutar.
A Comissão Europeia, o Conselho Europeu, o Banco Central Europeu e os governos nacionais que participam nestes órgãos, ou deixam de se comportar como vassalos dos mercados financeiros e da sua ideologia neoliberal e orientam as suas políticas para a protecção da economia real, para o crescimento do emprego, para o primado do bem-estar dos cidadãos e da renovação e sustentação do modelo de protecção social, ou é o euro e o próprio projecto da União Europeia como espaço de cooperação e de paz que estarão comprometidos.
Não é com a iniciativa Cantona que vamos lá no combate e no desarme dos mercados financeiros predadores e que damos a volta a isto.
Decisivos, sim, serão a mobilização social e política pela defesa, renovação e sustentação do Estado Social face à ofensiva de que é alvo; o combate e a unidade de acção, nas empresas e no espaço público, contra o desemprego, a precariedade, a desvalorização do trabalho e dos salários, aproveitando o grande impulso de esperança que a Greve Geral constituiu; a exigência renovada de outra política que não aceite que o Estado português e a Europa sejam prisioneiros dos mercados financeiros; o esforço de convergência social e política à esquerda capaz de produzir alternativas a este capitalismo insaciável.
Renovar o apoio à campanha internacional da ATTAC para o debate e a exigência de uma taxa sobre as transacções financeiras internacionais (que continua em marcha e tem um sítio Web próprio - ver aqui e aqui), que seja reguladora e limitadora da especulação e constituinte de fundos aplicáveis no desenvolvimento humano, é também certamente um modo, embora limitado e modesto, de cada um e todos afirmarem utilmente o seu compromisso cidadão de combate contra esta economia de casino em que o capitalismo se converteu.
Henrique Sousa, da Direcção da ATTAC Portugal
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