Os autores morais
por Mário Tomé
Os assassinatos do Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas e de Nino Vieira devem ser interpretados à luz das disputas e manobras com os militares e as sempre presentes tentativas de etnização da luta política na Guiné-Bissau, que, felizmente, ainda não extravasou para o povo, que tem demonstrado uma sensatez enorme, embora incapaz de encontrar formas de intervenção social e política que, explorando as contradições, dê uma vassourada transformadora na podridão instalada.
A acumulação de ódios e rivalidades na usura do poder e dos privilégiso terá estado por detrás da liquidação dos dois mais poderosos senhores em presença. O povo parece respirar aliviado. Assim já aconteceu várias vezes.
Nino Vieira foi o homem forte do regime que, antes e depois de aderir ao pluralismo dito democrático, ligou o seu destino económico e portanto político às propostas das nações amigas – URSS enquanto durou, Portugal, França, em especial – para o desenvolvimento. Essas propostas, invariavelmente anunciadas como ajudas ao desenvolvimento e de ataque à pobreza, trataram de implantar os critérios da economia de mercado e de rapina como base da democracia. A economia tradicional de subsistência, atrasada mas de onde a fome estava ausente, foi sendo ultrapassada pelos novos critérios, levando ao saque dos mares pelos arrastões soviéticos (enquanto durou a URSS e o peixe) e a implantação da influência da França como potência neocolonial afirmada. Zona do franco e depois do euro sob o signo da integração, a Guiné faz parte. desde Maio de 1997, da União Económica e Monetária Ocidental Africana (UEMOA). O combate à inflação, sob os auspícios da UEMOA e da Comunidade Económica de Estados da África Ocidental (CEDEAO) desde 1979, ao mesmo tempo que permitiu a Nino Vieira e sua corte aumentarem os seus privilégios, não avançou um passo no ataque à pobreza, mas foi liquidando a pouca capacidade de subsistência autónoma que restava. A produção para exportação, nomeadamente do cajú, valendo-se da mão-de-obra muito barata, foi tirando terras agrícolas até se chegar à situação de um défice de 50% no arroz ,a base alimentar por excelência, e de 60% nos outros cereais.
A Guiné tem petróleo e bauxite, que foi sempre um apelo à ajuda do costume da comunidade internacional e à codícia dos governantes e altas patentes militares. Da total desestruturação do Estado à permissividade face ao tráfico de droga foi um passo.
Uma espécie de «matai-vos uns aos outros» parece perpassar pelo o olhar dos transeuntes e espectadores, que são, na verdade, os verdadeiros sacrificados por décadas de despotismo boçal, sustentado pela comunidade internacional, nome dado às potências em disputa pelo controlo das riquezas potenciais. Nada disto tem a ver com a chama de Amílcar que iluminou a Guiné-Bissau desde 1956.
África, o ventre fértil que deu à luz a humanidade, que foi dilacerada pela barbaridade da escravatura, que foi estraçalhada, arbitrariamente dividida e sistematicamente espoliada com a colonização, que ressurgiu em toda a sua grandeza libertando-se formalmente do opressor, deixou-se aprisionar por aqueles mesmos que julgara expulsar.
O período pós-colonial mostrou até onde é capaz de ir o capitalismo, do que são capazes as multinacionais e as transnacionais, o real significado das ajudas dos Estados democráticos ocidentais, nomeadamente os ex-colonizadores: não recuam perante nenhum crime, por mais hediondo que seja.
Estamos perante uma verdadeira associação criminosa determinada a disputar as riquezas imensas deste sacrificado continente, em conjunto e numa disputa cujas regras são definidas pelo total arbítrio e pela prepotência sobre as populações indefesas. A aparente civilização que preside às relações entre Estados e multinacionais, entre si e no relacionamento com os Estados africanos, tem como denominador comum a salvaguarda da possibilidade sem limites de tripudiarem por sobre a vida e os intersses dos povos, e a segurança garantida pela corrupção persistente e sistemática das suas elites. Tal corrupção tem como suporte material a imposição dos critérios de produção e comércio, que asseguram às elites os maiores proventos e privilégios em troca da espoliação das matérias-primas e da produção agrícola para exportação para as «metrópoles» – podemos de novo chamar-lhes assim – , à custa da carência das populações, que se debilitam cada vez mais e também cada vez mais procuram o eldorado na emigração em massa.
Mas o assalto à África pós-colonial começou pela desagregação dos frágeis Estados emergentes, tornando-os totalmente vulneráveis. Para tal todos os métodos foram e são legitimados: guerras civis e tribais, fomento, apoio ou permissividade perante genocídios instigados e perpetrados às escâncaras e sob a vigilância plácida de tropas da ex-potência colonial ou até mesmo da ONU; utilização de crianças soldados, massacres, as mais graves e torpes violações dos direitos humanos.
Uganda e Ruanda, Sudão, Costa do Marfim, Libéria, Congo, uma infindável procissão de barbárie dá cobertura e alento à exploração das madeiras exóticas, do petróleo, do coltan, dos diamantes, da bauxite, do fósforo, em que chorudas migalhas permitem às elites enriquecerem alarvemente sob o aplauso das potências que cinicamente clamam por ordem, respeito, direitos humanos.
As populações africanas totalmente desprotegidas são ainda usadas como cobaias das multinacionais dos medicamentos, sem qualquer respeito pela vida humana.
A Guiné é também uma peça neste xadrez sórdido e sinistro.
Tudo começa muito civilizadamente e muito limpo, com programas de ajuda ao desenvolvimento, como os Acordos de Parceria Económica. E depois, tudo muito legal, o assalto consuma-se... Nenhum programa de investimento, normalmente com o aval dos Estados ricos e democráticos ocidentais, impôs a garantia de que ao investimento correspondesse a garantia do emprego, do salário justo, dos serviços públicos, do fomento da cultura. Todos os recentes programas, e longínquos, de erradicação da fome e redução da pobreza fracassaram fragorosamentre e, cada vez mais, uma e outra crescem Os pilares da comunidade do capital transnacional estão organizados num sistema mafioso e criminoso que a actual crise veio revelar de forma exemplar. Como é possível que se aceite que se façam negócios de biliões sem qualquer correspondência na criação de valor?
Os criminosos responsáveis pela tragédia africana não são apenas os que no terreno sacrificam os seus povos e ensanguentam as mãos.
Os autores morais de tantos e tão brutais crimes entram-nos pela casa dentro nos telejornais, investidos das mais altas e dignas funções sociais, económicas e financeiras e de Estado.
E jantam todos os dias num bom restaurante ao pé da nossa casa.
NOTA: os artigos assinados não reflectem necessariamente a opinião da ATTAC Portugal
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