domingo, 5 de dezembro de 2010

Wikileaks: Liberdade de expressão e "Realpolitik", a difícil relação

Imagem do artigo do Washington Times
reclamando "Assassinate Assange!
À medida que alguma imprensa internacional vai fazendo o seu trabalho de análise aos mais de 251 000 documentos disponibilizados pelo Wikileaks sobre as mensagens classificadas, confidenciais ou secretas, relativas à política e às relações internacionais dos EUA, vai-se tornando mais patente a duplicidade e a hipocrisia dos governantes da grande potência imperial e de outros países, na contradição factual evidenciada entre os seus discursos para consumo público e a realidade do que pensam e fazem. Porque não é apenas a crueza e a dureza da política externa norte-americana que é revelada e questionada, mas também, por exemplo, a duplicidade hipócrita das ditaduras árabes suas aliadas no Médio Oriente ou a relação entre a máfia e a governação de Putin na pseudo-democracia russa.

A reacção dos poderosos a estas revelações é sintomática de que a democracia política e a liberdade de expressão e informação param na fronteira dos seus interesses e têm um mero valor instrumental nas democracias liberais cada vez mais corroídas por dentro pelo capitalismo desenvolvido de que seriam a forma contemporânea. As ameaças e perseguições ao Wikileaks e ao seu responsável sobem de tom e são agora legitimadas por uma vaga de analistas, comentadores e actores políticos, desde os que criticam o Wikileaks por, com os seus actos, pôr em causa a “transparência” e a “decência” nas relações internacionais, aos que não hesitam em apelar à perseguição, ao julgamento por espionagem e ao assassinato de Julian Assange e da equipa do Wikileaks.

Comecemos por lembrar estes últimos, que são ilustração chocante do absoluto naufrágio moral e político dos mais assanhados defensores do establishment neoliberal e ultraconservador, e do modo como têm uma visão despudoradamente instrumental dos direitos humanos e da liberdade.

O que é mais expressivo na perseguição internacional em que os poderosos do mundo se empenham contra o Wikileaks e a equipa responsável, é que já não lhes basta desactivar o mensageiro, como tentaram nos EUA, expulsando-a dos servidores com a prestimosa colaboração da Amazon, ou na China (les bons esprits se rencontrent…), onde também bloquearam e censuraram o acesso ao Wikileaks (ver aqui). Querem liquidá-los fisicamente.

É o que afirmam abertamente, entre outros, um conhecido comentador político ultra-conservador norte-americano, Jeffrey Kuhner, na sua coluna no Washington Times (ver aqui), proclamando “Assassinate Assange!”; o ex-candidato republicano à Presidência dos Estados Unidos e comentador da Fox News, Mike Huckabee (ver aqui), Thomas Flanagan, assessor do primeiro ministro canadiano (ver aqui); o apresentador da Fox, William O’Reilly, também comentador da Fox News (ver aqui) e activistas da extrema-direita populista do Tea Party. A que se juntam a fatwa - porque a intolerância fundamentalista não existe apenas no mundo muçulmano - lançada pelo senador “democrata” conservador Joe Liberman, apelando à perseguição de Assange, e a inevitável Sarah Palin (ver aqui) que, aproveitando para responsabilizar Obama, exigiu que Assange fosse “caçado” e o equiparou à Al-Qaeda.

A histeria do império contra a equipa da Wikileaks atinge o ponto de se continuarem a imaginar donos do mundo e estarem a debater a possibilidade de acusarem de espionagem o australiano Assange e os seus colegas de equipa, de pretenderem julgá-los nos EUA e de acordo com as leis norte-americanas, apesar de estarem fora da jurisdição norte-americana. São estes os mesmos que apoiaram e conseguiram que os cidadãos norte-americanos não fossem abrangidos pelo Tribunal Penal Internacional, que serve para julgar sérvios mas não pode julgar os filhos do Tio Sam que sejam culpados de crimes contra a humanidade. Uma conveniente excepção protectora dos executantes do seu terrorismo de Estado. Ou, dito de outro modo, sempre dois pesos e duas medidas.

E agora, vamos ver o comentário e a argumentação de alguns analistas de serviço da nossa praça, que acham que o Wikileaks é que põe em causa a transparência ou a decência nas relações internacionais:


- Jorge Almeida Fernandes, em artigo no Público de ontem, proclamava em título que a "Wikileaks mata a transparência", usando uma expressão de um jornalista norte-americano, e invoca em seu apoio outras opiniões publicadas concordantes com a teses de que a transparência do Estado implica uma reserva de segredo, que as sociedades não sobrevivem sem Estado e que a "ditadura" da transparência faz desmoronar o Estado.

- José Cutileiro, ex-embaixador e comentador do Expresso, fala na sua habitual coluna desta semana na "indecência" de serem revelados arquivos secretos relativos ao presente, de como isso põe em causa a diplomacia necessária na relação entre Estados, defende a tese idílica de que as democracias (de que dá o exemplo dos EUA...) dispõem de mecanismos que permitem aos povos saber "o que é feito em seu nome" e propõe a tese de que "a transparência não é uma virtude, é um estratagema de comunicação".

“É a política, estúpidos!”


Desta vez, apesar de em campos opostos de pensamento, estamos de acordo pelo menos com uma tese expressa por Pacheco Pereira no seu artigo de ontem no Público, embora discordando de muitas das suas conclusões no mesmo texto: "o principal risco no modo como defrontamos estas 'revelações' é considerar que elas são jornalismo, quando elas são em princípio e na sua essência um acto político (sublinhado nosso)" e que, “nos documentos revelados pelo Wikileaks, há muitas ‘histórias’ jornalísticas fidedignas e muita história para fazer a prazo. Mas isso só é válido se os documentos forem entendidos como ‘fonte’ e não como produto final, porque entender os documentos em si mesmo como sendo as ’revelações’ é o mesmo que considerar que imagens não editadas são jornalismo televisivo ”.

De facto, a colocação no espaço público dos documentos pelo Wikileaks é um acto político de combate à hegemonia informativa do Império que procura gerir o discurso público do poder conforme os seus objectivos de dominação. Em que cidadania e sociedade civil são termos invocados pelo poder na medida em que não aborreçam os interesses instalados dos poderosos.

O problema para os poderes instalados é que os muitos que não se acomodam a esse jogo nem aceitam essa dominação, também usam aquilo que o capital financeiro sabe usar tão bem para hegemonizar e expandir os mercados a todas as esferas da vida humana e que o poder político utiliza para expandir a sua dominação sobre os comuns – as redes sociais e as imensas possibilidades de comunicação disponibilizadas pelas novas tecnologias de informação. É o que fez o Wikileaks e o que outros wikileaks farão se silenciarem este.

Porque é de combate pelo acesso aos factos, de combate no domínio da liberdade de expressão, em suma, de política, que se trata.

É sabido que está no código genético deste poder político tentar manter reserva e distância em relação ao funcionamento da “caixa negra” do sistema onde forja as decisões e as alianças políticas, ao mesmo tempo que não hesita, qual Big Brother, em invadir e liquidar o espaço privado das pessoas. Só que o realismo político nas relações internacionais e na esfera do poder invocado pelos analistas de serviço como justificação para a distância e a reserva também justifica a iniciativa dos cidadãos de invadir o espaço da política lutando pela alteração das relações de força e pelo acesso à informação e aos factos que lhe são recusados.

É então também natural que as imensas minorias cidadãs que não se conformam com a narrativa política deste poder imperial lutem por trazer à luz do dia o que o poder quer esconder, por arrancar da “caixa negra” do sistema o máximo de informação, o máximo de factos, nacos parciais duma verdade que lhes escapa e é negada, para que possam condicionar os poderes que, quanto mais absolutos e opacos, mais são absolutamente corruptos e corruptores.

Compreende-se a ira dos poderosos contra o Wikileaks quando a hipocrisia dos discursos públicos é confrontada com a realidade dos gabinetes, o seu esforço para silenciar os servidores informáticos e impedir o acesso, nos EUA como na China. Mas compreendem-se ainda melhor as iniciativas cidadãs, como o Wikileaks, que desafiam a cólera dos poderosos para pôr a nu as suas narrativas.

Adaptando uma célebre frase usada em tempos no debate político norte-americano (então relativa à “economia”), afinal “É a política, estúpidos!” . Ou, doutro modo, “Habituem-se!, exclamação célebre de um bem instalado comentador e político situacionista, então com outro sentido. Mas as palavras e expressões vão sendo usadas e ganham novos sentidos e por isso, António Vitorino, não resistimos à sua reapropriação.

É o Wikileaks que afecta a transparência nas relações internacionais ou a própria opacidade genética do poder político?


Afinal, se não fosse o escândalo “Watergate”, Nixon teria sido apeado do poder e condenado pelos seus crimes? Se não fossem as imagens trazidas à praça pública sobre Abu Ghraib, teriam sido desmascaradas as torturas e assassinatos de prisioneiros realizados pelas tropas imperiais ocupantes do Iraque, em absoluta contradição com o discurso do poder e com o jornalismo “embedded” inventado pelos norte-americanos para controlar jornalistas enquadrados nas suas tropas? E se não fossem os testemunhos e informações trazidos à praça pública, do interior dos corredores do tal poder político que merece a reserva da distância, saberíamos o que sabemos sobre a monstruosa manipulação montada por Bush e Blair para justificarem a invasão do Iraque com a acusação de armas nucleares que Saddam Hussein nunca possuiu? Se não fossem as fugas de informação, saberíamos em Portugal de numerosos factos que ilustram a relação promíscua entre poder político e negócios que está a envenenar e corromper a democracia política a um nível insustentável?

Por fim: o sítio http://www.wikileaks.org/ foi silenciado, mas renasceu em http://www.wikileaks.ch/ !

A narrativa da tensão entre poder e democracia vai continuar…


Henrique Sousa, da Direcção da ATTAC Portugal

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